«E quanto mais vezes atravessar o rio mais a minha dívida cresce para com o terrível rosto do barqueiro onde estava tudo o que eu ansiava violentamente atirado para o chão, com uns olhos que me diziam, para me consolar, que não valia a pena partir mas também não valia a pena regressar, e tudo o que eu queria conhecer era fútil ao pé da beleza de não contrariar nem seguir a corrente do rio que era o que o barqueiro tinha feito ao longo de toda a vida. Não só do rosto, o sorriso que espreita de um corpo cansado de remar, mas o sorriso de todo o barqueiro, assim como o sorriso de uma cara são os lábios torcidos para cima, o corpo dobrado do barqueiro era um sorriso, de quem sabe que quando se perdeu tudo ainda se pode perder mais um bocadinho. [...] mas há quem defenda que não contrariar nem seguir a corrente não equivale a atravessar o rio no mesmo sítio, mas numa diagonal a favor da corrente, pois atravessar o rio no sentido perpendicular às margens é já contrariar a corrente. Que pensas disto, velho remador? [...] E eu que tinha estado ali ao lado com a lígia, na Rua do Sol à Graça, a caber nela e a contorná-la ao longo da luz, e agora que se foi embora olhei em volta e encontrei um velho a chorar um pranto sem fim, cheio da porcaria dos pombos e dos casamentos».
Miguel Castro Caldas, As sete ilhas de Lisboa
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