Carmen

Aos 17 anos e três semanas entrei no autocarro junto com o resto da emigração. Ainda íamos a meio da viagem, era noite cerrada e o motorista mandou-me sair. Estava no meio do nada, era só eu e a auto-estrada e o homem a garantir-me que vinha uma outra camioneta daí a 5 minutos. E eu não tive medo, meu amor, porque tinha 17 anos e três semanas e ia ter contigo a França. Aos vinte anos e sete semanas segui-te rumo ao Brasil. Ias com sonhos de mudar o mundo, fomos morar para as favelas, as putas do bairro a desejar-me sorte para a minha noite. E eu não tive vergonha, meu amor, porque tinha vinte anos e sete semanas e dormia contigo. Aos vinte e três anos e nove semanas, fomos descobrir as ilhas gregas. Caminhávamos 20 km por dia, dividíamos uma sandes e uma peça de fruta ao pôr-do-sol. E eu não tive fome, meu amor, porque tinha vinte e três anos e nove semanas e viajava contigo. Aos vinte e cinco anos e três semanas acordava ao teu lado cheia de sede. A vida há muito que havia desistido de me assustar, me envergonhar ou testar a minha fome. E eu não tive mais amor, meu amor, porque a minha alma deixou de ter idade e abandonou todos os mitos. Quis sentir fome, medo e vergonha. Parti anteontem de madrugada. Dormias em casulo e o teu corpo de rapaz parecia ainda medir 17 anos e três semanas. A caminho do metro, a cidade enevoada, o meu corpo tremeu de frio e os meus olhos embaciaram-se de nostalgia. Tinha deixado para trás nove anos da minha vida e as poucas certezas do mundo.

1 nomades:

Tita Xana a dit…
2/11/08 17:31

e assim cai um mito e de repente se criam outros paradigmas

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