Mário

Das mãos de Maria Carlota, o afecto vinha sempre emparelhado com vergonha. Passava uma mão pela barba do filho e segurava com a outra a ponta do lenço, onde cuspia para lhe apagar as olheiras da cara. Naquele dia, Mário cuspiu a canja de galinha a saber a ranço pela janela da cozinha e escarrou a revolta na cara da mãe: «Que merda vem a ser esta? Lá por não conseguir vender esta trampa na tasca, não tenho eu de comer uma sopa que já tresanda. A mãe qualquer dia faz canja com a própria medula». Era assim que o pregão de Maria Carlota crescia até uivar.
Mário saiu porta fora, a tropeçar nos novelos de lã e nos cacarecos inúteis que a mãe acumulava no corredor. «Posso vir a morrer pobre, mas não hei-de ser nunca um miserável como estas velhas. A pobreza é uma puta que se instalou nestas miseráveis e as faz mendigar, regatear e vender a alma a cada esquina. Malditas velhas que tanto choravam pelos maridos levados pelos pides e sem perceberem venderam a dignidade a todas as bestas, do Salazar ao hipócrita do merceeiro». A memória do pranto das velhas ardia-lhe no estômago e ardia-lhe no peito a memória daqueles dentes podres enterrados no pão bolorento de anteontem. Desceu a rua Andrade até desaguar no Intendente, encostar-se à primeira esquina para vomitar a ressaca de uma vida alimentada de raiva e rancor.
Apanhou o metro do Intendente ao Areeiro e depois a camioneta até Vila Franca e depois mais 20 minutos a pé, até chegar a casa. Quando entrou, Luísa chorava no quarto e Adelaide chorava na cozinha ao colo de Arminda. Mário chamou pela filha e o colo de Arminda tornou-se fundo como um poço. Os braços da menina erguiam-se para o pai, como quem quer vir à tona. Quando Arminda cedeu, rangeu os dentes e praguejou a espumar de mágoa: «Leve lá essa bicha assanhada». Mário afagava a filha e cantava mudo para dentro do peito: «É bicho, mas não é da tua laia, velha velhaca. Este bicho é cria minha». E quando o ouvido da filha lhe reconheceu o canto do peito, Mário soltou a voz: «Filha, olho de lua, filha, cabelo de árvore, filha, boca de fome. Vamos amassar o pão sem o benzer, sem o beijar, vamos engolir o medo».

1 nomades:

ana a dit…
25/7/09 22:37

"vamos engolir o medo", que expressão dorida e viva.

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