ódios que andam por aí...

Podia começar este post a citar a minha querida amiga dos óculos de sol graduados, quando ela diz «a terra tem muitas cores». Mas parto de um pensamento paralelo e começo antes por dizer que o ser humano é uma matéria de ódios e paixões difíceis de gerir e digerir em comunidade, no colectivo, na alteridade. Nas alturas de mais desalento, cheguei a imaginar que a solução para remediar os crimes e os ódios do mundo, podia passar por um ajuste de contas à bruta, em que o Magrebe, o Congo, a Costa do Marfim e o Senegal colonizavam a França para a castigar da sua insolência e racismo, o Brasil e a África lusófona colonizavam Portugal para que este se redimisse de não ter vergonha da sua história e por insistir em ter o desplante de chamar aos africanos pretos bandidos com o seu ódio de branco e ladrões e putas aos brasileiros. Mas depois caio em mim, e lembro-me do Mathieu Kassovitz, lembro-me daquele ano lectivo 2005/2006 em Paris, em que dei aulas nos subúrbios onde se queimavam carros e se gritava a revolta de uma corrente social filha da puta e do quanto aprendi sobre o mundo e a alma humana. Lembro-me ainda de ser emigrante, servir famílias francesas, ser maltratada por ser portuguesa e dizer parvoíces sobre os franceses para acalmar a minha revolta. Que cheiravam mal, que eram frios, arrogantes, mal-educados, mal fodidos, por aí fora. A tentar ajustar contas. E depois regressei a Portugal e percebi que me sentia atingida quando ouvia falar mal dos franceses. Como aquela reacção das famílias que dizem mal uns dos outros, mas que não admitem que alguém de fora faça o mesmo. Eu que sempre critiquei o meu país natal, não suportava ouvir o escárnio dos franceses. Eu que sempre critiquei a pátria de emigração, não suportava ouvir o desdém dos portugueses. Sobretudo daqueles que só foram lá de férias. E igual com a emigração. Cresceu em mim um sentimento de intolerância ao preconceito e depois de dar aulas aos emigrantes portugueses em França, nunca mais digeri bem ouvir falar mal dos avecs. Claro que isto tudo foi acalmado e como não quero ser nem demasiado primitiva nem demasiado humana neste mundo cão, hoje em dia consigo rir e encarar certas piadas e sátiras sem me passar, encará-las na sua inocência e ignorância e não me armar em salvadora do mundo. Mas não gosto de ouvir generalizações injustas. Encaro com lucidez as diferenças culturais que nos fazem partir para o gracejo e para o preconceito. Não suporto e perco toda a lucidez e calma quando os estereótipos se tornam em dogmas e alimentam ódios. Nas crónicas das horas perdidas li a melhor frase da semana: «não posso endireitar o mundo, mas não vou deixar que ele me entorte». Lembrou-me um pouco As Mãos Sujas do Sartre, a impossibilidade de sermos inocentes e limpos neste mundo e a possibilidade de tentarmos contaminar-nos o menos possível, a esperança de tentar mudar um microcosmos na acção individual ou de pequenos grupos à margem do colectivo. Aceitar esta derrota um pouco cobarde, um pouco utópica também. Como dizem nos AA: «ter força para mudar o que posso mudar, aceitar o que não posso mudar e ter sabedoria para estabelecer a diferença». Qualquer coisa deste género.
A pior coisa que a Maitê Proença fez não foi ofender os portugueses com a sua ignorância de menina rica que cospe nos Jerónimos e manda vir com os empregados do hotel de 5 estrelas por eles não lhe resolverem a tremenda ignorância que ela transporta. O pior é que ela conseguiu alimentar ainda mais o ódio entre portugueses e brasileiros, um ódio assustador que tem vindo a crescer com esta última vaga de emigração. Ora eu sei que vivo num país com tendência a ódios e paixões xenófobas, onde é permitido que partidos como o PNR se candidatem. E eu sei o que é ser emigrante e além de andar exausta de trabalho ter de ouvir os meus patrões fazerem piadas e sugerirem que eu regresse ao meu país para além das instituições públicas, desde a segurança social à repartição de finanças, à bolangerie onde comprava o pão. Tive vários empregos de merda em Portugal. A maioria das vezes tinha colegas brasileiros. Eram os que trabalhavam mais e com mais alegria. Eram os que viviam pior. Sinto imensa raiva quando oiço os brasileiros serem tratados por putas e ladrões, porque me lembro sempre de ter sido emigrante também e de já em França ter amigos brasileiros que se matavam a trabalhar. E depois há cretinas, burras que dormem em hotéis de 5 estrelas, que a partir de um número de porta decidem tratar os portugueses de atrasados mentais, dizendo-se simultaneamente portuguesa e brasileira quando não percebe puto do que é uma ou outra cultura. E quando não merece nenhuma delas.

4 nomades:

Ana a dit…
14/10/09 18:12

A crónica de que mais gostei sobre o tema. Veio dar a mim num alerta do google sobre emigração portuguesa. Também já falei, com colegas, precisamente dessa dimensão de nós podermos dizer o que quisermos sobre o que não gostamos, e ai de quem vier concordar :-)

A pior resposta à ofensa com estereótipos é a que é feita na mesma moeda. E será uma pena se acirrar ódios, é do que menos precisamos.

catarina a dit…
14/10/09 18:49

Obrigada Ana! Hoje em dia cruzar-me com quem rejeita o ódio e o preconceito é acima de tudo um encontro raro que me traz um sentimento de paz muito compensador.Do género, se calhar ainda vale a pena ter esperança neste caos...

Anita a dit…
15/10/09 21:29

Eu vi a cena da Maitê no youtube antes de aparecer nos telejornais (confesso que não assisti aos noticiários, contaram-me no dia seguinte). Quando vi fiquei altamente chocada e pensei, OK também há muitos portugueses aí na rua a dizer mal dos brasileiros, mas provavelmente nenhum deles teria a arrogância de se levar tão a sério, muito menos uma figura pública. Há muitas pessoas com preconceitos contra os brasileiros mas nenhum canal de televisão português autorizaria emitir uma reportagem num tom assim... Por isso não sinto que o episódio tenha servido para aumentar ódios como dizes, até porque a figura também não encarna nenhum esterótipo, nem para um lado nem para o outro. Acho só que ela fez figura de parva (para ser branda no adjectivo e não querendo desculpar)... Preconceitos de parte a parte há e provavelmente vai haver sempre, mas não quero cair também na tentação do esteótipo e da generalização.

Teresa Gaudêncio Santos a dit…
16/10/09 15:57

Uma coisa boa me trouxe esta "novela" de quinta categoria em que se transformou esta "não-notícia" da Maitê: trouxe-me a este blogue!

E vou continuar a vir. Porque, para além deste, outros posts muito interessantes se lêem por aqui. Além de que, nesta blogosfera imensa, é raro encontrar quem escreva bem, em português correcto e bem construído e com a clareza e ideias que aqui ficou demonstrada.

Parabéns pelo Blogue.

Beijinhos,
T.

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