Francesismos

A médica simpática perguntou-me se eu trabalhava. Sim, disse eu, dou aulas de português. Sorriu imediatamente. Sorriem sempre quando digo isto, de repente perdoam-me o sotaque, perdoam-me o facto de ser portuguesa sem ter bigode e sem ser porteira. Passam a tratar-me bem. Parece-lhes de repente tudo lógico. É uma frase que esclarece todos os equívocos. Se dou aulas de português em França, de repente já faz sentido o facto de morar cá, já não estou a roubar nenhum trabalho aos franceses, a minha emigração torna-se aceitável e mesmo apreciável. Coisa que nunca aconteceu quando disse que escrevia uma tese sobre o teatro do absurdo. Era o que faltava mais uma emigrante inútil a aproveitar-se do nosso sistema de saúde. Quando cá cheguei respondia à mesma questão dizendo que era empregada doméstica ou que estudava. Nem sempre lhes parecia lógico que andasse por cá a estudar. Já empregada doméstica assentava que nem uma luva no meu sotaque e condição. Mas tratavam-me sempre pior. Nunca sorriam. Gosto de sentir esta mudança de tratamento, de condição, as pequenas vitórias que alcancei como ter um apartamento em vez de um quarto com wc no corredor. Nutro-me com sentimentos comezinhos, incho-me de alegria por já não ser tratada como porteira. Devia ter vergonha na cara e revoltar-me por de repente me começarem a tratar bem por motivos tão estúpidos. Não é o facto de ter o buço feito e de não ganhar mais a vida a limpar a merda destes gajos que me faz merecer ser bem tratada. Quanto mais me apercebo da hipocrisia e xenofobia dos franceses, mais sei o quão cobarde sou por ter entrado no sistema e hoje saber como me fazer respeitar e pô-los a sorrir em vez de escarrar. Nada me resta senão aceitar a minha cobardia e deliciar-me com endívias e coquilles Saint Jacques. Não me sobram muito mais ideais para além de me esforçar por ser competente no meu trabalho e estar ao dispor da minha entourage. Este é um tempo parco em certezas e eu só sei que não quero voltar a ganhar a vida a fazer faxina.

2 nomades:

Tita Xana a dit…
26/12/10 12:34

A entourage agradece.
;)

Anonyme a dit…
29/12/10 16:06

A mãe da 'entourage' também agradece :) Tens toda a razão e escreves muito bem, mas não menosprezes o sistema de saúde francês para emigrantes. Eu eatou-lhe muito reconhecida!! No nosso país não seria tão eficiente, podes crer!! Beijos

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