Já passa da hora e ainda tenho de aturar este cretino deste genro, depois de ter enterrado dois maridos. Logo hoje que não tenho vagar. E o fulano a gesticular com as mãos papudas e ar de fedelho enfezado e insolente: Não ponho mais os pés nesta tasca cheia de lesmas a treparem pelas paredes e esta mulher que nem sabe escrever. Lesma é você, seu malcriado! desampare-me a loja que já pus o letreiro lá fora. não tarda tenho a clientela à porta a pedir-me travessas de caracóis e canja de galinha e não são os acentos nem os hagás que os vão servir, diz Maria Carlota ainda com esperança que lhe aviem aquela sopa gumosa com pedaços de cenoura cortadas pela metade. O que a safa é que há caracóis, com ou sem h, com ou sem acento. O genro afasta-se com passos de carroça e já da rua lança o último insulto, com as bochechas a transbordar de cuspo e despeito: Mais valia continuar a distribuir lã pela Baixa e pelo Verão a dentro, como fazia a parva da sua mãe. E a Maria Carlota esquece a sopa mais do que destinada a ser queimada no fogão, mas é a memória que arde e que sobe a Travessa Terras Monte, os ombros e a voz mais céleres que as pernas, os ombros e a voz a oscilarem de um lado para o outro. Do ombro esquerdo a injúria declamada e esplendorosa, com a mão a terminar na anca e a apoiar-se no rim. No ombro direito repousa de quando em quando a voz do apelo a ganhar fôlego, com o braço e a mão a gesticularem e a mandarem entrar a clientela esquecida dos caracóis, porque a fome de ouvir injúrias é bem maior que o apetite do petisco. O braço que gesticula, em breve se esquece do apelo e desce em direcção à anca para se apoiar no outro rim, porque é daí que a injúria se transforma em pregão. Pregão que sai desnorteado pela Rua Rosalina a fora para ir dar à Rua da Graça. Não fosse a clientela da Maria Carlota um maralhal de vizinhas sedentas por apregoar, já o enfezado do genro deve ter dobrado a esquina dos Anjos e ainda se ouvem as mulheres a coleccionarem insultos e pragas, junto ao mercado de sapadores. No apregoar é que está o ganho, Maria Carlota. E por pior que seja a tua tasca, não há pregão que dê mais sede que o teu.
Maria Carlota
Posted in on 03:29 by catarina
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2 nomades:
So imagino a Maria Carlota a dizer: "Olhe, vocêeee"
É muito bom, o que escreves.
Cheira a Lisboa.
Tens letras que cheiram a manjerico e a Tejo em dias de primavera.
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