Nas Naus de Lobo Antunes, o personagem Francisco Xavier é um chulo que ganha a vida a explorar prostitutas e emigrantes na Residencial Apóstolo das Índias. No final do dia arrasta-se com a seguinte réplica:
«Por mim não tem nada que saber: arrasto a cadeira de baloiço de palhinha para o centro do vestíbulo, de onde se vê a porta e as tábuas do sobrado se lamentam menos, apago a luz e fico à espera, a soprar com força no escuro que elas regressem das boites de Arroios ou das Árvores do Campo Santana, exaustas, despenteadas, de sapatos na mão, com o baton desbotado pelos beijos dos clientes, perseguidas à distância por ladrar de cães, buzinas de automóveis despeitados e o pífaro do vento nas ervas e nos prédios em ruína. (…) Portanto oiço o ruído da cadeira de baloiço e os diversos, estranhos, múltiplos, ínfimos barulhos da casa, passinhos de carocha no silêncio, a agitação das traças, o ressonar dos hóspedes, escuto a manhã que chega ainda escuro, no reboliço dos pássaros nos caboucos vizinhos, enquanto aguardo que as mulheres trepem, encosta acima, das discotecas de vodka marado do Bairro das Colónias e da Luciano Cordeiro, que entrem na pensão tontas de vinho falso, que passem por mim sem me notarem sequer, a fim de estender o braço para a última, para a mais bêbeda e sonolenta e desprevenida de todas, a espalmar contra os relevos do balcão, lhe levantar as lantejoilas da saia e lhe lavrar as coxas, à força, numa energia de arado, à medida que a cadeira oscila no soalho, para trás e para a frente, a palhinha do assento, até os meus arrancos terminarem ao mesmo tempo que os suspiros do pau, ela alisar o vestido num som de cravos de papel que se mistura com o das asas dos pombos, e eu me afastar, compondo a braguilha, para enxotar o focinho do primeiro cão vadio, surgido da noite a espiar da soleira, no jazigo da Residencial, as múmias adormecidas dos hóspedes»
Quantos cobardes assim povoam os nossos dias sem sabermos? o habitué da pastelaria ou o outro da tasca a quem nos habituámos a ver aos domingos à tarde quando assistimos à bola, e cúmplices sem o sabermos, sem o querermos, cumprimentamo-los com a cumplicidade de quem torce pelo mesmo clube a beber cerveja gelada. O que vale é a escrita de denúncia a lembrar a má sorte de se ser puta.
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4 nomades:
"a ma (sem acento) sorte de se ser puta" eheh robinha, grande texto, eu sinto-me assim quaiseeee todos os dias! Esse Lobo é possuido, traz ai uns livritos em setembro, kero ler isso :) Sinon, bobinha a 70%, ainda nao a 100% et c'est déjà un bordel... (de putas!)
beijinhos pra robinha!
O que retenho deste texto é a sensibilidade única de um homem. Nao vejo aqui a personagem, vejo aqui o Autor, a genialidade do Autor.
Ainda estou a iniciar-me em Lobo Antunes (nomeadamente na "Memória de Elefante") e não estou a gostar muito, mas tenho esperança que futuras leituras me tragam mais prazer.
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